quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Palavra não é palavra morta
Nem é palavra única
Palavra é habitável
Habitada

Casa aberta
Onde mora o sentido nômade
Que transborda

Palavra é navalha
Fio que corta, fio que crava
Esculpe em mim sua existência

Presente no corpo
Talhada na pele
É provisória.

Palavra encarnada
Corpo-palavra.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Até

Sempre penso em cortar
a parte inicial da minha poesia.

Três estrofes

É o tempo que leva para meu coração
engolir meu cérebro.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para não ficar à mercê dos acontecimentos

Não acreditar num Deus transcendental implica uma série de questões. Implica um posicionamento específico com relação à vida, por exemplo.
A vida não pode ser descolada dos seres que a compõem. Não existe "a vida", como algo separado de mim, independente. Pois entendo que ai também está colocada uma idéia de transcendência. A vida como algo que me transcende, ultrapassa, a qual eu não dou conta e está colocada naquilo que é exterior/superior a mim.
Ora, se eu não acredito em um Deus transcendente em virtude do aprisionamento que essa idéia produz, no plano de uma moral , a respeito do "bem" e do "mal", da disseminação da culpa e, sobretudo, da produção da morte no vivo, eu preciso fazer uma aposta semelhante em relação à vida.
A transcendência não se esgota na idéia de Deus.
Como eu posso não acreditar em um Deus transcendental e, ao mesmo tempo, desacreditar da vida? Como eu posso olhar para a vida como um "algo em si", aquilo que simplesmente acontece e do qual não faço parte? Como não acreditar em Deus e, ao mesmo tempo, falar que "a vida" é uma merda?
Meu caro, se a vida é uma merda, a merda somos nós, pois nós fazemos essa vida a todo tempo e momento. Logo, estamos construindo a merda do mundo nas nossas práticas cotidianas. Somos um bando de fascistas que negam O Transcendente - já que doutrinário, hipnotizador e produtor de engessamentos - mas, em contrapartida, não apostamos nossas fichas naquilo que nos é imanente. Somente "chutamos o pau da barraca". E, veja só, paramos por ai.
Vamos virar coveiros, então?
Vamos enterrar "a vida"? (O que implicaria nos enterrar a nós mesmos).
Já que a vida é uma merda e não há o que fazer, virar coveiro é a opção cabível.

Não acreditar na idéia de um Deus transcendente implica, dentre outras coisas, dar-se conta de si e do mundo e, principalmente, responsabilidade. Ambos sendo um exercício a todo o momento. Ou seja, trata-se de compreender (dar-se conta) que nós compomos a vida e são as nossas ações que podem (devem) produzir disrupções.
Produção de caminhos-outros, esse é o exercício constante.
E é um compromisso, afinal, estamos todos implicados. Não há como se eximir da parcela de responsabilidade que nos cabe pelo que colocamos para funcionar no mundo. Porém, pesa a idéia de que somos responsáveis por aquilo que atualizamos. Estamos sempre nos esquivando de tomar posse daquilo que produzimos: a culpa é sempre do outro ou "a vida" é assim mesmo (uma merda, diga-se de passagem). São essas as nossas justificativas. Nos acalmamos com falsas questões e falsas soluções.
Não acreditamos No Transcendental mas deixamos essa idéia escorregar para a vida, para nosso entendimento da mesma, a partir da nossa prática (presente no próprio discurso). E isso também produz aprisionamento, tal como ocorre quando se fala de uma moral religiosa.
Ficamos engessados, à mercê dos acontecimentos. Somos levados pelo fluxo.
E isso vem bem a calhar, pois, pensar novas formas e se deslocar do lugar que se ocupa requer certo esforço e isso causa dor de cabeça.
Fincamos nossos pés num território, no qual descansamos à sombra. Nesse lugar, nos cabe apenas sermos conformistas. E se for para ser algo mais além disso, sejamos revoltados.
E chutemos o pau da barraca, por favor!

O transcendentalismo está em nós. Pretensão nossa é o colocarmos ao encargo de Deus, apenas.

Não basta não acreditar em Deus. Afinal, você tira o poder de Deus e o coloca onde? Na potência de padecimento?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ilusionista,
Dispõe de truques que ornam seus discursos com flores, tiradas de sua cartola venenosa.
Quase ninguém sabe mas, na verdade, as flores são armas.

Sereia,
Canta e tapa os sentidos dos que a ouvem cantar.
Seu canto dormente hipnotiza e engessa.
O canto é uma arma.

Ele é um adestrador de focas
E joga o peixe, tal como uma isca.
Para ser mordido e estraçalhado,
Para saciar a fome dos sedentos.
O peixe desperta o pior da foca.
O adestrador desperta o pior da foca:
Seu desprezo pelas outras focas e sua vontade de estraçalhar o peixe.
Tanto o adestrador, quanto o peixe, são armas.

Doutrinário,
Ensina estes animais, dá-lhes peixe em recompensa mas, ainda assim, deixa-os famintos.
Para saciar essa fome, ao invés de peixe, joga carne humana.
E eles a trucidam.
O que ele ensina é uma arma.
A fome é transformada em arma, também.


Nessa parábola, nós somos as focas.
E o adestrador doutrinário.
E a carne jogada.
E a fome.

E estamos devorando a nós mesmos.