quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"Porque não teria direito de falar da medicina sem ser médico, já que falo dela como um cão? Por que razão não falar da droga sem ser drogado, se falo dela como um passarinho? E por que eu não inventaria um discurso sobre alguma coisa, ainda que esse discurso seja totalmente irreal e artificial, sem que me peçam meus títulos para tal? A droga às vezes faz delirar, por que eu não haveria de delirar sobre a droga? Para que serve essa sua “realidade”? Raso realismo, o de vocês. E então por que você me lê? O argumento da experiência reservada é um mau argumento reacionário. A frase de O anti-Édipo que eu prefiro é: não, nós nunca vimos esquizofrênicos".

Carta a um crítico severo - Gilles Deleuze
No nobis solum set toti mundo nati

A passos largos e lentos

E então te encontrar, um ano após tudo que nos aconteceu, e perceber:
Estes meus olhos é que não são mais os mesmos.
Eu me livrei de você e, principalmente, de mim.

A única coisa que sigo amando é aquilo que não sei de nós dois.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Cansaço

Vamos fazer uso das pessoas!
Sugá-las até que nossos buracos sejam tapados
E deixemos que elas, as pobres sugadas, padeçam
Morram esvaziadas

Vamos secar as veias dos que são bons e, por isso, fracos
Aqueles que deixam sempre a porta aberta
Braços abertos para o abraço
Os idiotas da inocência!

Matemos essas pessoas com nossa vida suja:
É assim que se vence o fraco bonzinho numa batalha
Tudo isso é pura estratégia

Tente ajudar quem não faz nada por si mesmo
E você morrerá
Verá a vida secar diante de seus olhos
Que secam junto com a vida

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Às palavras que produzem morte, não se tem o que argumentar. O suicídio não é definido meramente pela bala na cabeça, ou pela corda no pescoço. Você pode estar produzindo morte - sua e daquilo que está em relação com você - com a própria fala.
Produção de morte no vivo, despotencialização da vida, circuito escravo. Chame como quiser: você é um morto andante, meu amigo.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Você

Você me chama para ir a sua casa tomar um café e conversar. Eu vou. Eu estou sofrendo, você sabe. E quer me ajudar. Mas eu estou tão fechada... Tão fechada ao toque, à acolhida, ao afago, ao saber parar.
Eu tenho pressa, tenho pressa e estou anestesiada dos sentidos. Corro numa demência não sei de que, não sei para onde. Caminho no caos silencioso, no desespero indomado, alto, ensurdecedor, mas surdo. Estou louca... Enlouquecendo com o caos que implode em mim, mas que ninguém vê, a não ser através de minhas vistas cansadas e vermelhas. Eu sangro por e para dentro.
Você está sentado no sofá comigo, me olha, me ouve, tenta me apaziguar no olhar. Fala coisas sobre minha doçura, pede que eu me mantenha firme e te telefone a qualquer hora, qualquer situação. Diz-me que não vou salvar ninguém, que peguei uma onda maior do que eu podia aguentar, diz que ninguém ensina ninguém a nada, muito menos a ser nada. Fala que preciso aprender a olhar o que uma pessoa faz, não o que ela fala. É o que ela faz que me diz quem ela é, segundo você. Eu te ouço e choro, choro muito, não sei o que fazer. Durante estes dias eu não soube o que fazer. Não queria ficar onde estava, mas também não queria seguir. O desespero do não-caminho me corroia. Doía ter que acordar todo dia. Para mim, essa era a pior parte da dor. Eu acordava e, antes que se contasse um segundo, a memória da dor desabava na minha cabeça, feito concreto, e eu queria não levantar. Eu queria não ter que olhar pela janela. A dor me pregava na cama, tal como um cristo.
Ali, você pedia para que eu deixasse você cuidar de mim: eu precisava aprender a ser cuidada, também. Parar de cuidar de tudo e, simplesmente, parar. Abrir-se para.
Eu olhava você, a sala, a luz, a TV. Eu estava tão imbecilmente anestesiada dos sentidos, tão alheia ao toque. Eu estava ali, com você, mas perseverava na deriva do ser-nada, no torpor da minha existência burra e esgotante.
Você estava expondo uma vontade: cuidar de mim. Naquele momento, eu pousei. Senti demência de mim mesma e vi se instalar ali, na distância que nos separava no sofá, um compromisso pesado, uma tentativa de pacto, de agarre. Vinculação maluca com cordão de ferro. O grito estourou: os sentidos romperam a barreira do silêncio anestesiado e a angústia do barulho me bateu. Todos os meus sentimentos gritavam sofridamente e eu tinha desespero. Preferia que eles calassem a boca, ou eu os mataria a tiros.
Não, eu não quero ser cuidada, não quero estar aqui. Quero ir embora agora, me deixar ir embora, abre a porta. Por favor, pare de insistir. Cada pedido seu é um buraco de bala a mais no meu corpo. Não quero criar laço com você, não quero laços com nada. Quero poder ir embora quando eu quero. Não quero o compromisso. Eu sou fuga, sempre. Eu não sou tão doce como você imagina. Sai, tira a mão, me solta e me deixa ir. Eu tenho repulsa ao pacto do cuidado e você se tornou presídio.

Nunca mais te vi.

sábado, 13 de novembro de 2010

Ponto.

Escrever é derramar-se
Eu me entorno nas linhas que escrevo

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Quando me descolo de mim

Quando estou caminhando, indo a algum lugar, em mim é o lugar em que não estou.
Nos meus passos, saio do centro e transbordo. Vazo para o meio e, assim, torno-me o encontro entre meus olhos e aquilo que eles veem, mesmo quando a vista é perdida, desfocada.
Eu não sou eu, mas também não sou meu entorno, o externo. Ocupo mesmo esse lugar que é o entre: uma dobra que se faz eu e fora e que, no movimento de tornar-se outra coisa a todo o momento, não fixa em nenhuma dessas formas.
Não sou meu pé (apesar de também o sê-lo), mas também não sou o chão (apesar de também o sê-lo): sou o ínfimo instante não mensurável que traduz a possibilidade de toque entre ambos. Mas, não sou o toque.
Mantenho-me fluante, mas presente. Sou estrutura aberta, corpo vazado. Habito em mim e em vários, mas, não colo em formas.
Estou o tempo inteiro me reconhecendo como eu e me fazendo outras.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Addendum

Olho a simplicidade de algumas pessoas na rua e me sinto um corpo de adendos. Preciso disso, preciso daquilo. Me orno com isso, me orno com aquilo. Somos o mundo pavão! Queremos tapar um buraco que cresce quanto mais o tapamos. A eterna falta! Agora, a falta do indizível, aquilo que ainda não foi inventado mas que, quando o for, terá preço. Preço!
Valor? Nenhum. Utilidade? Nem vou entrar nesse mérito...
Consumimos tanto e nos falta tanto que a falta já se instalou em nós. É gastrite, úlcera. Dor de fome que quanto mais se come, mais persiste como vontade de comer.
Somos corpos ausentes de si mesmos, pavões-autômatos andantes e nervosos. Não podemos ser tocados, para não destruir a ornamentação. Abraços? Só entre os iguais.
Meu Deus, riam, riam todos! Riam dessa deplorável condição humana. Somos homens-adendos que se pretendem completos. Completude de armário, garagem e conta bancária.

Agora riam de mim, por favor.
Preciso me livrar de mim mesma.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Palavra não é palavra morta
Nem é palavra única
Palavra é habitável
Habitada

Casa aberta
Onde mora o sentido nômade
Que transborda

Palavra é navalha
Fio que corta, fio que crava
Esculpe em mim sua existência

Presente no corpo
Talhada na pele
É provisória.

Palavra encarnada
Corpo-palavra.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Até

Sempre penso em cortar
a parte inicial da minha poesia.

Três estrofes

É o tempo que leva para meu coração
engolir meu cérebro.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Para não ficar à mercê dos acontecimentos

Não acreditar num Deus transcendental implica uma série de questões. Implica um posicionamento específico com relação à vida, por exemplo.
A vida não pode ser descolada dos seres que a compõem. Não existe "a vida", como algo separado de mim, independente. Pois entendo que ai também está colocada uma idéia de transcendência. A vida como algo que me transcende, ultrapassa, a qual eu não dou conta e está colocada naquilo que é exterior/superior a mim.
Ora, se eu não acredito em um Deus transcendente em virtude do aprisionamento que essa idéia produz, no plano de uma moral , a respeito do "bem" e do "mal", da disseminação da culpa e, sobretudo, da produção da morte no vivo, eu preciso fazer uma aposta semelhante em relação à vida.
A transcendência não se esgota na idéia de Deus.
Como eu posso não acreditar em um Deus transcendental e, ao mesmo tempo, desacreditar da vida? Como eu posso olhar para a vida como um "algo em si", aquilo que simplesmente acontece e do qual não faço parte? Como não acreditar em Deus e, ao mesmo tempo, falar que "a vida" é uma merda?
Meu caro, se a vida é uma merda, a merda somos nós, pois nós fazemos essa vida a todo tempo e momento. Logo, estamos construindo a merda do mundo nas nossas práticas cotidianas. Somos um bando de fascistas que negam O Transcendente - já que doutrinário, hipnotizador e produtor de engessamentos - mas, em contrapartida, não apostamos nossas fichas naquilo que nos é imanente. Somente "chutamos o pau da barraca". E, veja só, paramos por ai.
Vamos virar coveiros, então?
Vamos enterrar "a vida"? (O que implicaria nos enterrar a nós mesmos).
Já que a vida é uma merda e não há o que fazer, virar coveiro é a opção cabível.

Não acreditar na idéia de um Deus transcendente implica, dentre outras coisas, dar-se conta de si e do mundo e, principalmente, responsabilidade. Ambos sendo um exercício a todo o momento. Ou seja, trata-se de compreender (dar-se conta) que nós compomos a vida e são as nossas ações que podem (devem) produzir disrupções.
Produção de caminhos-outros, esse é o exercício constante.
E é um compromisso, afinal, estamos todos implicados. Não há como se eximir da parcela de responsabilidade que nos cabe pelo que colocamos para funcionar no mundo. Porém, pesa a idéia de que somos responsáveis por aquilo que atualizamos. Estamos sempre nos esquivando de tomar posse daquilo que produzimos: a culpa é sempre do outro ou "a vida" é assim mesmo (uma merda, diga-se de passagem). São essas as nossas justificativas. Nos acalmamos com falsas questões e falsas soluções.
Não acreditamos No Transcendental mas deixamos essa idéia escorregar para a vida, para nosso entendimento da mesma, a partir da nossa prática (presente no próprio discurso). E isso também produz aprisionamento, tal como ocorre quando se fala de uma moral religiosa.
Ficamos engessados, à mercê dos acontecimentos. Somos levados pelo fluxo.
E isso vem bem a calhar, pois, pensar novas formas e se deslocar do lugar que se ocupa requer certo esforço e isso causa dor de cabeça.
Fincamos nossos pés num território, no qual descansamos à sombra. Nesse lugar, nos cabe apenas sermos conformistas. E se for para ser algo mais além disso, sejamos revoltados.
E chutemos o pau da barraca, por favor!

O transcendentalismo está em nós. Pretensão nossa é o colocarmos ao encargo de Deus, apenas.

Não basta não acreditar em Deus. Afinal, você tira o poder de Deus e o coloca onde? Na potência de padecimento?

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ilusionista,
Dispõe de truques que ornam seus discursos com flores, tiradas de sua cartola venenosa.
Quase ninguém sabe mas, na verdade, as flores são armas.

Sereia,
Canta e tapa os sentidos dos que a ouvem cantar.
Seu canto dormente hipnotiza e engessa.
O canto é uma arma.

Ele é um adestrador de focas
E joga o peixe, tal como uma isca.
Para ser mordido e estraçalhado,
Para saciar a fome dos sedentos.
O peixe desperta o pior da foca.
O adestrador desperta o pior da foca:
Seu desprezo pelas outras focas e sua vontade de estraçalhar o peixe.
Tanto o adestrador, quanto o peixe, são armas.

Doutrinário,
Ensina estes animais, dá-lhes peixe em recompensa mas, ainda assim, deixa-os famintos.
Para saciar essa fome, ao invés de peixe, joga carne humana.
E eles a trucidam.
O que ele ensina é uma arma.
A fome é transformada em arma, também.


Nessa parábola, nós somos as focas.
E o adestrador doutrinário.
E a carne jogada.
E a fome.

E estamos devorando a nós mesmos.

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Você ficou preso na minha poesia.
Dissolvi e espalhei você nela. Preenchi os espaço da poesia com teu corpo.
Escrevi você por lá.
E por lá te prendi.

Penso, agora, se por acaso eu, ao invés de te prender, tenha te inventado lá.

Acho que te inventei e te prendi.

Na verdade, aquilo que em mim sente te inventou nas linhas da minha poesia.
Ora, aquilo que em mim sente - e em mim habita - brinca comigo
Inventa você em cores, cheiros e sorrisos
Mas te deixa preso nos versos.

Decidi te soltar
Olhei ao redor
Olhei você em realidade e te busquei nas minhas linhas,
Tudo isso para trazer você, te descolar dos versos
E te colar em mim.
Dessa vez, não achei a poesia.

sábado, 25 de setembro de 2010

O olhar dele me encanta
O corpo dele me encanta
Encanta-me o modo como o corpo dele ocupa espaço no mundo.
O caminhar, a postura, o gesto.
O sorriso com os olhos, a cor da pele.
A leveza no olhar. Sorriso calmo, apanhador de borboletas.

Ah, pena que esse corpo não é meu.
Esse sorriso não é meu.
Seu olhar não atravessa o meu.

Ironia da separação, acaso distrator.
Encanto-me por você e pelo espaço que nos separa.
Tudo isso é muito sedutor.
Porém, esbarro-me no desejo e não consigo ser além dele.
A vida é louca.
Escapa o tempo inteiro.
Pelas bordas, ela foge e se faz em outros cantos.
O que existe diante de mim, nesse instante, já não existe mais.
Possíveis.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Por uma escrita de três linhas

Dar linguagem à beleza me faz risonha.
O que é belo não tem nome, mas pode ser escrito.
Ironia de mim mesma.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Já vi alguns progressos em mim.
Não sou mais aquela que enche as capas e contra-capas dos cadernos com dizeres e canções, esperando que estes me tapem os buracos do coração.
Continuo padecendo de amores, eu sei. Amores e excessos.
De faltas também. (e por que não as teria?)
Mas, já vejo progressos em mim.
Sei calar e estar comigo mesma.
Aprendi a paz de si que o silêncio dá.
Aprendi do silêncio a solitude.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Poema-pílula*


Sou toda amor
Sou toda ele
Por ele, para ele
E enquanto o sou
Sou por enquanto
Por um instante
Mutante
Movimento


* Relembrando Ana Cristina César.
Ps: Vasculhar antigos cadernos é rever antigos poemas, escritos em cantos de páginas.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Somente o acaso tem voz


"Você, que ousa ter uma opinião, você fala em nome de quê?"

As práticas de liberdade nesse mundo estão cada vez mais mortificadas.
Estamos, na maioria das vezes, amarrados a domínios de saber.
Endurecidos nesse território.

Mas, a (há) arte...
Arte é ponto de escape, precipício.
É dançar livre no território.
É ser um pano de seda levado pelo vento.
Leveza.


Para saber a vida é preciso tocá-la

Nenhum sentido, no mundo, está dado.
É você, pelo seu esforço, que deve habitar algum sentido nele. Você precisa se deslocar do seu lugar e tocar as coisas. Habitar sentido nelas.
Não há nada de errado com o esforço*.
Há tempos o sentido não existe na sua vida porque o lugar ocupado por você é o mesmo: o lugar do não-esforço.
Não se engane com a sua imobilidade.
Para saber a vida é preciso tocá-la.

Sua liberdade é imóvel. Liberdade esquadrinhada.
Pensamento de aliterações.

Não tem a ver com força x fraqueza, mas sim com vida e não-vida.
Não há fraqueza contra força.
A dualidade/dicotomia é "paixão pelos extremos, desejo de morte disfarçado".


*É esforço propriamente dito. Ação positiva.
Trabalho. Construção de experiência.



segunda-feira, 28 de junho de 2010

Um Respiro

Moradora de uma pequena ilha do outro lado do Atlântico, ela era louca. Na verdade, era vista louca. Era vista dessa forma por aqueles que compartilhavam o mesmo espaço de vida que ela. Ela mesma não se achava assim. Achava-se intensa, se sentia intensidade e tinha dificuldade para se conter, fazer borda, se dar margens, limites. Por isso, sempre vazava. E vazar não lhe era permitido.

Aos vazamentos, o olhar inquisidor daqueles que a cercavam. Olhos de domesticar gente.

Louca por quê? Só porque escapava às margens? Que mal há em transpor as fronteiras daquilo que acordamos como "o certo"?

A loucura da qual os habitantes do pequeno vilarejo a acusavam era uma loucura moral: loucura daquele que não tem trato para falar, que não tem trato para agir. Loucura daquele que faz os outros sentirem vergonha dos atos-loucos, porque eles são intensos e incompreensíveis.

Ela não cabia em si mesma. Transbordava na busca da plenitude e da liberdade. Transbordava no seu encontro com a vida porque queria sentir ao máximo, dissolver a pele que a separava do mundo que habitava.

E a pele dissolvia no mar... Por isso ela se atirava nele. Ela se atirava com força e o mar arrancava-lhe a pele. Era assim que ela e o mar se tornavam uma coisa só. Os olhos fechados, o mar, ela, o horizonte. Ela era o próprio horizonte.

Angustiava-se quando pensava que podia ser contida, recolhida a pequenos atos. E o vilarejo inteiro pedia a ela que vivesse em pequenos atos, numa peça curta, objetiva e certeira.

Mas não, ela não aceitava. Ela queria ser grande obra, epopéia, odisséia, poesia. Queria ser dança, malabarismo, fuga.

Queria ser gente. Mas gente viva, com os poros abertos.

Gente à flor da pele. Com uma flor na pele. Gente-natureza.

Por isso, saia plantando flores em passos, atos, olhares. Desorganizava a norma e a conduta das pessoas de pequenos atos com sua grande obra, epopéia, odisséia, poesia. Bagunçava tudo com flores.

Entrava num embate para cravar flores na pele das pessoas e fazê-las dissolver. Dissolver para sentir. Sentir para, enfim, viver.


quarta-feira, 26 de maio de 2010

É a vida inteira.

Às vezes fico pensando se as pessoas pensam sobre o que seria a vida. Na verdade, penso se elas pensam sobre o que seria estar na vida. Pensar o que é a vida, hoje em dia, virou pura metafísica. E deixemos, pois, que da crítica à metafísica se ocupe Caeiro.
Falo sobre estar na vida. Eu não sei se isso soa estranho a vocês, como me soou quando pensei nisso pela primeira vez.
(Pela primeira vez com o corpo inteiro, gostaria de fazer esta ressalva, porque se engana aquele que acredita que só se pensa com a cabeça. A coisa bem pensada, mesmo, é pensada com o corpo inteiro. É sentida na pele, cravada nela. É indissociável dela).
Bom, estar na vida é um acontecimento.
Acontecimento.
Por favor, prestem atenção. Vocês conseguem sentir como bate em nós a dimensão da palavra, quando dita?
Estar na vida é um acontecimento. E o que isso implica? Somos seres no mundo, num mundo completamente esquizo, que se abre diante de nós enquanto uma infinidade de possíveis.
Apenas isso.
Mas, sendo isso, já é tudo.
Como, estando na vida, tendo sido literalmente inaugurado no mundo - na medida em que todo acontecimento/existência é único, singular -, não pensar acerca disso que são nossas ações de vida na vida? Viver enquanto autômatos? Será possível?
Por isso penso se de fato pensamos, nós, sobre o que é estar na vida. Porque acredito ser terrivelmente triste uma vida ausente de si mesma, vida esvaziada de si. E nem sei se o nome disso é vida. Estranha-me pensar sobre corpos, seres no mundo, que não pensam sobre si mesmos, sobre suas ações. Nem que seja para dar um sorriso de gratidão, apenas.
“Grato pelo acontecimento, Deus sive Natura”.
Penso, muitas vezes, que por viver uma vida vazia de si, talvez não consigamos experimentar a sensação da dimensão de estar aqui, de compor com alguma coisa, de constituir um território. Talvez não consigamos experimentar uma vida nua, colocada a nossa frente para ser apreciada crua, em seu aspecto mais frágil e voraz, mais vívido. Talvez vivamos pela metade, muitas vezes por acreditar que a vida é assim mesmo, “não sendo lá grande coisa”. Admitindo, a contragosto, que a possibilidade - que aqui eu entendo como viver consciente de si e do mundo - está colocada apenas para alguns.
Por favor, vamos nos incendiar a nós mesmos e uns aos outros. Produzamo-nos estranhamentos. Pensemo-nos a vida na vida.
Sejamos a própria estrela dançarina à qual aquele filósofo se refere.
Não me excluo desse processo que falo aqui. Estou misturada nisso tudo que escrevo. Sou autora e personagem dessa minha escrita. Mas, no meio de um infinito de possíveis, um acontecimento dentro do acontecimento maior que é a minha existência, inaugurou em mim esse pensar sobre estar na vida. Refiro-me à Psicologia e ao meu encontro com ela. Encontro na maioria das vezes difícil de ser traduzível à linguagem, sendo quase como um insubordinado a ela.
Esse encontro produziu e ainda produz, em mim, uma disrupção, que me faz pensar com o corpo inteiro, com meus poros.
Penso com imagens e a imagem que me vem à cabeça agora, para ilustrar isso que acabo de dizer, é a de uma pessoa sendo reanimada com um desfribilador. Essa é a disrupção que acontece em mim. Que me faz sentir a vida estando nela.
Não quero, tal como Álvaro de Campos, ser alguém que acredita conquistar o mundo antes de se levantar da cama, mas que, ao se levantar, percebe que esse mesmo mundo é opaco, alheio e imenso. Tão mais imenso que a minha imensidão. Não quero me contentar em apenas olhar a Tabacaria defronte. Quero ser a estrela dançarina e estar a serviço da vida. Quero sentar com aqueles que compõem junto comigo um território - essas pessoas, esses corpos, meus queridos amigos de estrada – e falar a respeito disso que tem me movido. Dessa sensação pensada, dessa pensação sentida, que é estar na vida. Que é tudo e nada.
E é. Pelo menos na minha loucura.
Vejam só... Eu padeço por pensar que devo incendiar corações a pensarem-se a vida.